sexta-feira, 20 de agosto de 2010

"Fahrenheit"


Quando as pessoas me diziam que o perfume era como uma identidade, uma impressão sensitiva presencial, eu não costumava acreditar. Tantas pessoas eu já abracei e sequestrei para dentro de mim pelas narinas... Com exceção de duas ou três de intimidade familiar incontestável, nunca me lembrei de alguém por consequência do respirar. Até hoje.

Alguém usou o seu perfume; alguém que eu admiro muito. Parou do meu lado indiscretamente e o vento fez sua parte de enfiar aquele seu cheiro pra dentro de mim, na direção do meu cérebro. Parei de respirar. Não podia ser ninguém além de você. O primeiro.

A princípio não entendi por que ele fez isso. Por que roubou de ti a única coisa que eu ainda lembrava sem querer ser tua. Mas o acaso tem suas reservas incontestáveis e absolutas. As pessoas utilizam-se de artifícios extravagantes para nos atingir – e você usou aquele pobre homem de caráter. Era você impregnado naquele pescoço e naquela roupa, jogando na minha cara todos os momentos que eu juro já tinha esquecido.

Pude ouvir sua voz se gabando que aquele era importado e custava mais caro que os que eu usava, mas não tão caro, pois você nem se importava em desperdiçá-los em meus pertences – que era pra eu não sentir sua falta. E já estava na metade daquele vidrinho crepuscular imponente, mas tudo bem, pois você já ia comprar outro com o troco da tequila. Não tinha cama, nem cabelo, nem sonhos e passava rodo no banheiro depois do banho; mas dinheiro para o perfume nunca lhe faltou. O cheiro ácido-amadeirado do seu perfume que impregnava os quatro cantos do seu quarto vazio. Foi como uma tempestade o seu cheiro: no início me agradou, mas sua persistência intermitente me sufocava mais a cada dia e eu não podia sair de casa para lembrar do ar puro, pois você estaria lá com seu cheiro orgulhoso, derrubando-o como orvalho do amor em tudo que me cercava. Como se tornou irritante a sua presença inconfundível! Você chegava sempre sorrindo com o cheiro antecipado sabendo que eu amava tudo isso, enquanto eu sorria com os lábios nauseados e os olhos lacrimejando de coragem e covardia – corajosa para te encarar e covarde para te deixar. Eu devia ter inventado um fim para esse desespero. Que poder o teu perfume tinha de me afastar e você! E... que desculpa inovadora eu encontrei para me livrar da sua sombra inodora!

Foram dias difíceis aqueles ao seu lado. Nada digno de ser recordado. Nada além do cheiro ácido do passado, que quando misturado com seu suor me dava arrepios que serviam como choques para acordar a minha vida e me dizer que meu tempo não podia ser perdido.

E por você nunca saber disso, hoje não tem mais cheiro. Até agora.


18/08/10 - Samantha P. S.